Dias Sem Fio (de Prumo)
A primeira coisa que percebo é que a entrada já está cheia. Uns em pé, outros de cócoras, rabiscando, telefonando, picando o teclado de um telemóvel ou de um tablet. Alguns sussurram a miserabilidade da sua condição a aspirantes de qualquer coisa, outros silenciam bem fundo a sua dor mordiscando os lábios. Em todos eles há o cansaço bem explícito do percurso – uma família que se tenta esquecer, uma outra cidade distante neste país que, para todos nós, está apenas dividido em quadros de zona. São vários os que palmilharam dezenas de quilómetros para, como pedintes, virem desaguar aqui de mão estendida. Sim, nada mais somos que isso mesmo: pedintes. Nos rostos de alguns são visíveis, também, as rugas do tempo – têm mais de catorze ou quinze anos de profissão, mas o sistema troça deles e escarnece, ainda, dos outros, os idiotas dos mais jovens que acharam que tinham um buraquinho de oportunidade para entrar pela porta da frente.
Eis-nos, portanto, todos, aqui.
São vários os que procuram a mesma brecha, revelando que, daí a pouco tempo terão que ser omnipresentes num outro lugar para irem, novamente, estender a mão às migalhinhas que caem no chão. O mais alto do grupo silencia umas jovens que gargalham a tristeza – a loira veio de Viseu, a morena de Beja. Num desabafo incontido, revela o seu asco pelo desprezo de que foi alvo – ao ligar para um outro local de entrevista, pedindo que lhe marcassem nova hora por não a poder cumprir, uma vez que aguardava ainda por uma outra, deram-no por desistente – ” quem não comparece é eliminado”.
O silêncio exala no minguado corredor e, depois, vários evidenciam ter passado pelo mesmo. “Até pelos colegas somos tratados como lixo…” remata alguém.
A campainha estridente toca e passam por nós, em passo acelerado, os miúdos com os seus risos de sineta melódica. Mais atrás, os passos indiferentes dos professores, os verdadeiros, os autênticos que nós aspiramos a ser um dia, desaparecem no suspiro de alguém.
Finalmente, chamam o meu nome. Nada podia ser mais caótico nas nossas vidas, nem a ordem de chegada é respeitada e eu, secretamente, agradeço pela confusão. Subo as escadas e o meu coração palpita de nervosismo – saberei responder a tudo sem enrolar a minha própria língua? Saberei vencer os restantes concorrentes com uma machadada de brilhantismo? Serei eu a candidata perfeita a ocupar um lugar neste concurso feito de ingratidão e miserabilidade?
Os meus interlocutores, júri do meu programa televisivo, estão sentados numa longa mesa, como um observatório em que nada mais sou que uma pequena formiga. Aparentemente fazem parte da direção, mas nenhum se apresenta ou me olha nos olhos. Seguem maquinalmente um questionário requentado e eu esforço-me por sorrir enquanto respondo, apesar de ninguém ver o meu rosto sequer ou aparentar interesse por alguma das minhas respostas.
Não sei quanto tempo passou entretanto, mas ao descer as escadas, lastimo não ter ouvido o público bater-me as palmas euforicamente. Despeço-me desejando boa sorte a quem fica e ainda oiço, ao fundo, alguém contar que a sua filha tem percorrido as mesmas escolas em que a mãe fica colocada, para não se separarem – uma por cada ano da sua vida, que são já dezasseis. Ao sair do portão, vislumbro o olhar enegrecido de uma fumadora que há pouco esperava comigo. Fez agora uma pausa na espera. Tem os olhos humedecidos e desvia de mim o olhar, enquanto soluça discretamente.
Também eu tenho vergonha e tenho nojo de toda esta humilhação e de toda esta indiferença e de toda esta atitude condescendentemente degradante com que somos brindados.
Contudo, no meio de tudo isto, eu até tenho uma tremenda sorte. Já vou na terceira entrevista do dia e consegui chegar com pontualidade. Sigo para a próxima, já depois do almoço que não pude comer para não gastar dinheiro, nem trocar as horas.
Quem sabe, talvez no caminho encontre, por azar ou acidente, o ministro que me diz que nada mais sou que uma candidata a professora, do alto do seu estéril gabinete estanque onde assina leis avulso como pacotes de batata frita sem sal. E, então, talvez mais do que vaiar a sua presença incómoda, mais do que gritar todo o asco que lhe tenho, eu lhe possa escarrar toda a minha dor e a dor de todos os colegas que, de norte a sul deste país, ainda a esta hora, estão agarrados a um computador, a um telefone, ou sentados numa qualquer cadeira sem assento, de mão estendida a pedir, a pedir por favor um lugarzinho, enquanto lá longe, muito longe, toda a família espera por cada um deles.
DG
( Do Blog "Ar Lindo")